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Carta Aberta ao Prefeito, às Vereadoras e ao Vereadores – AGB SÃO PAULO

Carta Aberta ao Prefeito, às Vereadoras e ao Vereadores

“A CIDADE DE SÃO PAULO NÃO É UM NEGÓCIO: A PROPOSTA DE REVISÃO DO PLANO DIRETOR DESCONSIDERA AS NECESSIDADES URGENTES E ESTRUTURAIS DA POPULAÇÃO E TRARÁ IMPACTOS NEGATIVOS PARA O FUTURO DA CIDADE”

O processo de debate sobre a revisão do Plano Diretor aprovado em 2014 levantou uma série de propostas de aperfeiçoamento deste, a partir de estudos e avaliações de seu impacto em várias áreas e temas. Entretanto o texto da proposta de revisão do Plano Diretor apresentado pelo relator na Câmara Municipal ao invés de considerar estas propostas, simplesmente descaracteriza a estratégia urbanística do Plano e não enfrenta as questões levantadas no debate. Pelo contrário, dialogando e incorporando apenas as propostas do setor imobiliário, apresenta um novo plano, que nada tem a ver com os princípios, objetivos e diretrizes do plano em vigor.

Este substitutivo, radicalmente diferente da proposta da prefeitura (que estava sendo debatida)  foi apresentado pelo legislativo uma semana antes de sua aprovação em primeira votação, sem estudos que justificassem as mudanças e sem apresentar razões do porquê das propostas feitas pela sociedade civil e pelos próprios técnicos da prefeitura terem sido descartadas.

Esta proposta atende unicamente aos interesses de rentabilidade do negócio de um setor específico da cidade, da incorporação imobiliária, em detrimento do interesse público. Entenda por que:

1) DESFIGURA A ESTRATÉGIA DO PLANO AO DISSEMINAR NA CIDADE INTEIRA AS POSSIBILIDADES DE CONSTRUÇÃO DE GRANDES TORRES, AUMENTAR A CONSTRUÇÃO DE GARAGENS E PERMITIR A CONSTRUÇÃO DE APARTAMENTOS DE LUXO JUNTO AO TRANSPORTE COLETIVO

Uma das estratégias centrais do Plano em vigor foi concentrar as possibilidades de construir mais nas áreas próximas das estações de metrô e trem e ao longo de corredores exclusivos de ônibus, com o objetivo de atrair mais moradores para onde existe transporte coletivo de massa. Para isso o plano definia que ao longo destas áreas deveriam ser construídos prédios mais densos (apartamentos menores e com menos garagens) para atrair mais gente usuária de transporte coletivo. Fora desses “eixos”, o que foi chamado de “miolo de bairros” os edifícios seriam mais baixos e poderiam ser menos densos.

Na aplicação concreta desta estratégia, várias distorções aconteceram: não se estudou em cada bairro que tipo de alteração isto poderia provocar, nos eixos melhor localizados na cidade os produtos lançados atraíram um população de alta renda e usuária de automóveis, explodiu a oferta de micro apartamentos de menos de 30 metros quadrados na cidade, entre outros temas. Ao invés de procurar apresentar uma resposta a estas questões, aperfeiçoando os instrumentos do Plano, o substitutivo simplesmente propõe aumentar a área de abrangência dos Eixos de Estruturação da Transformação Urbana, originalmente com 500m,  que passariam a ter um raio de até 1 km das estações de metrô e trem e 450 metros ao longo dos corredores de ônibus, valor que antes era de 250m.

Além disso, o substitutivo permite e estimula que se faça apartamentos maiores nos eixos, não só incorporando uma proposta que já constava do PL encaminhado pela Prefeitura (que  previa a alteração da cota parte nos Eixos para 30m² – resultando em apartamentos em média de 120m²), mas também permitindo  que,  se o empreendedor pagar, pode ferir a lógica de adensamento habitacional prevista pelo PDE, podendo produzir empreendimentos de alto padrão a serem lançados em localizações privilegiadas. Ou seja, a lógica de “democratização” das áreas em torno do transporte coletivo fica oficialmente boicotada.

Além disto, nos  “miolos de bairro” – Zonas Mistas (ZM) e Zonas de Centralidade (ZC), que abrangem maior parte da cidade -, o substitutivo libera indiscriminadamente  a possibilidade de maior adensamento construtivo descaracterizando a relação dos edifícios com a cidade existente e sem mecanismo que garantam qualidade ambiental das novas construções. Da forma como está no substitutivo qualquer lugar da cidade é passível de verticalização, sem qualquer lógica ou relação com infraestrutura, paisagem, ambiente, memória e história.

Esta alteração, além de não ter sido apresentada pelo executivo ou debatida em nenhum momento do processo participativo, vai contra a lógica atual de estabelecer possibilidade de adensamento construtivo e populacional nas áreas próximas das redes de transporte de alta e média capacidade e fomentar o uso do transporte coletivo. Com este objetivo, a lei atual delimita a quantidade de vagas de garagem em edifícios residenciais, principalmente em áreas próximas a estações de transporte coletivo. A proposta que veio do Executivo já trazia possibilidade de aumento de vagas de garagem, o que inúmeros estudos apontam como um grande retrocesso. Agora, para piorar, foi alterada a redação para “1 vaga de garagem a cada 60m² de área privativa, excluído o somatório de áreas ocupadas por vagas, desprezadas as frações”, o que dificulta ainda mais a transparência dos cálculos e modifica a lógica do adensamento vinculado ao uso do transporte coletivo, bem como viabiliza ainda mais a construção de apartamentos de alto padrão, que contam com mais vagas de garagem.

2) IGNORA AS NECESSIDADES DAS PERIFERIAS E DA POPULAÇÃO MAIS POBRE
Uma das apostas do PDE foi procurar aumentar a oferta de moradia em áreas melhor localizadas e infraestruturadas para assim, diminuir as áreas de expansão urbana precária. Ora, o que estamos vendo na cidade hoje é uma verdadeira explosão da precariedade: novas periferias sendo formadas, o aumento da população em situação de rua e pessoas vivendo em condições ultra precárias em áreas centrais. O substitutivo do PDE simplesmente ignora essa situação: incentiva mais e mais produtos imobiliários que embora sejam denominados como “habitação de interesse social” não são acessíveis a quem mais precisa. O substitutivo, ao invés de criar mecanismos que possam enfrentar isso, deixa de contemplar os problemas diários da maior parte da população, que encontra na cidade condições de precariedade urbana e ambiental, o que impacta diretamente sua qualidade de vida.

O documento apresentado não traz propostas concretas sobre os temas que atingem as periferias. Além disso, reafirma o modelo de produção de “habitações de interesse social” pelo mercado, sem formas efetivas de controle público ou destinação destas unidades através de políticas habitacionais, delegando ao mercado não só a produção mas também o controle e fiscalização.

3) ENFRAQUECE E DETURPA O FUNDO DE URBANIZAÇÃO (FUNDURB)
O FUNDURB, fundo montado com os recursos do pagamento da outorga onerosa do direito de construir e destinado para investimentos em habitação social, projetos de mobilidade ativa e transporte coletivo, patrimônio histórico e áreas verdes é duplamente enfraquecido neste projeto: através de vários incentivos de gratuidade e por meio da possibilidade de pagamento da outorga em obras, ao invés de destinar recursos para o fundo. A nova modalidade de pagamento é uma porta aberta para a corrupção. Permitindo que construtoras paguem a outorga por meio de obras públicas cujos valores são variáveis e de difícil fiscalização. Além de enfraquecer a capacidade da prefeitura de orientar o desenvolvimento urbano da cidade, a proposta permite que nessa modalidade haja um pagamento menor, com 10% de desconto em relação ao que seria pago na forma de Outorga Onerosa.

Dado que a proposta possui uma série de lacunas em relação à forma de gestão de tal processo, tal formato abre portas para que o próprio mercado ofereça obras que interessam aos seus próprios empreendimentos, em detrimento de uma política territorial que atenda às reais necessidades da população. A proposta ainda flexibiliza as atividades atendidas pelo FUNDURB, permitindo execução de recapeamento de asfalto, serviço de baixa complexidade e alto custo, que nada tem a ver com os objetivos originais do fundo.

4) CRIA UM ZONEAMENTO DE EXCEÇÃO: A ZONA DE CONCESSÃO
Cria-se uma figura que pode funcionar como um cheque em branco para concessionários de espaços públicos, na medida em que delega a definição das regras de uso e ocupação do solo para as próprias modelagens (econômicas) dos concessionários. Trata-se de uma total inversão, já que o destino de trechos inteiros da cidade (e no entorno de equipamentos públicos) passa a ser definido não pelas necessidades da cidade mas pelas possibilidades de retorno financeiro dos investidores. Esse modelo abre a possibilidade que esses concessionários construam e organizem os espaços de concessão conforme regras de uso e ocupação do solo próprias, alinhados com seus interesses econômicos. Essa proposta abre a possibilidade de que os concessionários privados promovam intervenções em patrimônio público sem acompanhamento, sem a necessidade de que seja discutido um programa de interesse público, sem que seja criado um projeto de intervenção urbana ou que a sociedade seja ouvida de outras formas.

5) DESCONSIDERA PROPOSTAS SOBRE DIREITO À MEMÓRIA E PERMANÊNCIA NOS BAIRROS
A revisão proposta intensifica e amplia o processo de expulsão de populações de seus bairros, sobretudo da população negra que — como atestam pesquisas — não é contemplada pelo processo de verticalização e valorização imobiliária. Territórios negros em áreas bem servidas de infraestruturas são ameaçados uma vez que não há instrumentos que atuem no sentido contrário, para garantir equidade e equiparação racial de acordo com o perfil geral da população do município. Além de perverso enquanto elemento de reprodução do racismo estrutural, este processo de troca de população incide diretamente no direito à memória e a promoção do cultivo de práticas culturais e modos de vida diversos. São exemplos disso regiões historicamente ocupadas por populações negras, descendentes de quilombos ou com vínculos sociais estruturados ao redor de escolas de samba e organizações comunitárias — que sofrem reiteradas ofensivas de apagamento e desarticulação — mas também suas variadas formas de moradia e trabalho.

6) NÃO ENFRENTA AS MUDANÇAS DO CLIMA
Embora a narrativa da revisão seja de articular a aplicação da lei aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável — ODS da Agenda 2030 e outros acordos internacionais, as propostas realizadas vão na direção oposta. Não promovem democratizam o acesso à cidade, não tratam da perda de vegetação intraurbana observada nos processos de adensamento construtivo nos últimos anos e relegam à parcela da população com menor renda que enfrente isso de forma privada. Ou seja, não promovem a justiça climática em um contexto em que a relação entre o clima global e o clima urbano em São Paulo levam a um aumento dos riscos relacionados aos eventos extremos com impactos mais graves nas periferias.

7) COLOCA EM RISCO A VIABILIDADE DE UM NOVO MODELO PARA A OCUPAÇÃO DAS VÁRZEAS
A proposta aumenta o potencial construtivo no entorno do rio Tietê, libera o limite de altura e reduz os valores de outorga onerosa a serem pagos pelas construtoras. Queima-se um estoque construtivo com um preço reduzido que, no longo prazo, pode inviabilizar toda a transformação da região do rio Tietê que demanda um novo modelo de ocupação mais aderente a uma área de várzea, com os  investimentos necessários em drenagem, parques, equipamentos públicos e moradias sociais.

8) DESONERA O FUNDURB COM NOVAS REGRAS PARA TDC
O substitutivo aumenta ainda mais  os benefícios da Transferência do Direito de Construir (TDC) de bens tombados, cuja aplicação, até agora, se deu de forma concentrada. Privilegia-se, assim, alguns poucos imóveis de grandes dimensões em detrimento daqueles menores, como conjuntos de casas em bairros tombados, justamente aqueles com maiores dificuldades para financiamento de obras de restauro. Desde a aplicação do dispositivo, verifica-se que a quantidade de imóveis que emitiram atestado de conservação foi pequena. A maior parte dos pedidos ocorreu mediante termo de compromisso, ou seja, com o recurso liberado sem que a obra de restauro tenha sido de fato feita. Ou seja, a aplicação do instrumento exige fiscalização e monitoramento e a renovação a partir da data da declaração teria um impacto que precisaria ser antes mensurado no controle desses processos.

9) ABRE A POSSIBILIDADE DO EXECUTIVO, VIA CTLU, ALTERAR O ZONEAMENTO
Quanto à previsão da CTLU definir parâmetros urbanísticos (artigos 23 e 72 do substitutivo), parece-nos estar presente o risco inconstitucional de tal iniciativa, se considerarmos a jurisprudência recente das decisões jurídicas sobre matérias semelhantes da política urbana (vide ADIN 2304556-40.2020.8.26.0000). Ou seja, é um caminho que abre a possibilidade de definição discricionária de regras que poderão beneficiar interessados em pleitear a alteração pontual do zoneamento.

10) CRIA UMA FIGURA INEXISTENTE: AS PRAÇAS URBANAS PRIVADAS
A criação de um plano municipal de praças urbanas não precisaria estar num Plano Diretor, ao menos que sejam definidos parâmetros urbanísticos ou utilizados instrumentos específicos. O substitutivo ao PL 127/23 abre a possibilidade de criação de praças urbanas privadas, sendo que os artigos 41 e 78 possibilitam a utilização da Transferência do Direito de Construir – TDC em tais praças, sem doação para a prefeitura, cujo potencial passível de transferência contará com fator de incentivo de 3,5. Assim, um empreendedor poderá implantar uma praça urbana em um determinado lote com baixo valor de investimento (custo para implantação da praça), manter a propriedade da área e ainda transferir um potencial construtivo de 3,5 vezes a área do terreno, para um outro empreendimento que deixará de pagar contrapartida financeira para a prefeitura. Tal medida gera redução da arrecadação de valores do FUNDURB, sendo bastante questionável o benefício e interesse público alcançado com essas praças urbanas na proporção dos benefícios concedidos.

11) ESTABELECE O CONTROLE SOCIAL DE FUNDO PÚBLICO DE PARQUES POR MEIO DA INDICAÇÃO DO PREFEITO
O Substitutivo estabelece a criação de um fundo municipal de parques, cujo conselho para controle social, ao invés de seguir o princípio de Gestão Democrática (a partir de eleição para representação direta ou por meio de associações representativas) será “composto por cidadãos de reconhecida credibilidade pública, indicados pelo Prefeito”. Isto demonstra o retrocesso nos princípios democráticos e abre caminho para uma gestão do fundo discricionária e clientelista.

E NO QUE ACREDITAMOS?
Posto isso, e reiterando a importância da construção democrática real no planejamento e definições dos rumos a serem tomados na cidade, solicitamos a SUSPENSÃO da revisão até que:
 1 – Seja feita uma investigação sobre as denúncias envolvendo o favorecimento de interesses econômicos em troca de apoio no período eleitoral;
2 – Sejam apresentados e debatidos os estudos que motivaram as novas propostas presentes, sobretudo no Substitutivo;
3 – Sejam produzidos materiais ilustrativos e vídeos que apontem os impactos das mudanças propostas para ampla difusão nos meios de comunicação de modo que a população possa compreender o que está em jogo e assim entender e se posicionar sobre as mudanças;
4 – As contribuições da sociedade civil e dos conselhos municipais que foram apresentadas ao longo do processo sejam sistematizadas, disponibilizadas em formato aberto e o motivo de sua não incorporação seja devidamente justificado.

Participe das manifestações relacionadas à revisão do Plano Diretor: nesta quinta-feira, 15/06, às 17h na Câmara de Vereadores e no dia 20/06, às 13h00 na caminhada que sairá da Praça da República em direção à Câmara de Vereadores.

carta produzida pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil – Departamento de São Paulo e assinada pela AGB Seção Local São Paulo

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